O interrogatório



A sala escura e a fumaça que se acumulava no teto anunciavam o clima de tensão que pairava no ar , os rostos cansados e abatidos apenas serviam para confirmá-lo. Seu rosto, em particular, demonstrava grande exaustão. Ele fechava os olhos e franzia fortemente a testa cada vez que ouvia o sons vindos da sala ao lado :
“ - Mas eu já disse que não sei - gritava irritadamente uma voz feminina - quantas vezes eu vou ter de repetir...”
Durante alguns momentos o silêncio era sepulcral, de repente recomeçava :
“ - Eu sei... eu sei... não estou negando a minha participação nem a minha culpa... só sei que não sei o que vocês querem saber... eu fui sendo envolvida pela situação... não, não foi uma decisão precipitada, não aconteceu de repente... não, também não foi uma coisa que surgiu do nada... premeditado ? não, não foi premeditado... acho, ou melhor, tenho certeza, que se eu tivesse pensado... é, nestas horas a gente não pensa, ou se pensa a razão não prevalece... “
Sentiu um aperto na alma, só interrompido pelo tapa no ombro e a luz dirigida direto sobre os seus olhos. Não conseguia identificar exatamente quantas pessoas estavam na sala. Pelo timbre de voz achava que eram três ou quatro, além do delegado que o conduzira para o interrogatório, mas o movimento dos vultos à sua frente aparentava uma audiência maior. Não sabia se seu advogado estava lá, se estivesse não tinha aberto a boca.
“ - Chega de refresco - falou com voz grave o delegado - mesmo porque até agora o senhor não contou nada de novo. Nós vamos começar tudo de novo, e não adianta insistir que já falou tudo que sabia ! Eu tenho certeza que falta alguma coisa que por algum motivo escuso o senhor se recusa a falar... “
“ - Mas eu já assumi a culpa - replicou - aliás nunca, desde o primeiro momento , eu nunca neguei ter cometido o crime, será que isto não é suficiente ? “
“ - Chega ! - interrompeu bruscamente a voz do delegado - Lembre-se sempre das regras do jogo , e a regra número um é nunca interromper a pergunta e, principalmente, não me interrompa quando eu estiver falando...”
“ - Mas...
“ - Nem mais , nem menos. Durante as perguntas você cala a boca e ouve direitinho - e, virando de costas continuou - o senhor quer começar agora , doutor ? “
Uma voz nova confirmou ao delegado que estava tudo pronto para o reinício da sessão, Parecia uma voz conhecida, mas não conseguia se lembrar exatamente quem era, ou onde a ouvira antes.
“ – Muito bem, o senhor declarou aqui anteriormente que conheceu Carolina na escola. Que durante anos se relacionaram apenas como colegas de classe e que, ao final do curso cada um foi para o seu canto. Confere ?”
“ – Sim senhor, foi isso mesmo...” (que voz é essa ?)
“ – Durante o período escolar vocês nunca tiveram mesmo nenhum relacionamento amoroso ? “
“ – Nenhum. Uma vez fomos ao...”
“ – Não perguntei se foram ou não, responda apenas o que for perguntado !” (a voz....aquela voz...na escola? na igreja?) “ – Depois disso foram se reencontrar acidentalmente na rua ?”
“ – Sim, quer dizer, não, foi num shopping, não foi na rua.”
“ – E o que ocorreu depois disso ?”
“ – Eu não sei bem como aconteceu” , balbuciou, “ convidei-a para um café, conversamos sobre o passado, sobre o que tinha acontecido nas nossas vidas depois da escola... de repente eu a convidei para sair.”
“ – Assim do nada ? O senhor costuma convidar todas as mulheres que conhece para sair ?”
“ – Claro que não !”
“ – Respeito com o juiz !” – gritou o delegado.
Era um juiz, pensou. Por quê um juiz se estava ainda em fase de interrogatório ?
“ – O senhor pode me explicar, então, o motivo do imotivado ?”
“ – Meritíssimo, essa é a parte que até hoje eu não encontrei explicação. Foi paixão à primeira vista...”
“ – Que primeira vista rapaz ? Você conhecia a moça há anos...”
“ – Mas foi como se nunca a tivesse visto, era uma outra pessoa ou, sei lá, talvez fosse a mesma pessoa e eu nunca tivesse notado isso. Eu sei que, sem saber como nem por que, eu estava amando...”
Um murmurinho correu a sala. Mais uma vez ele confessava o crime, da sala ao lado só vinham os soluços de choro de Carolina.
“ – O senhor sabe que essa é uma confissão séria, não é mesmo ?”
“ – Claro que sei. O senhor é juiz sabe bem latim, amor tussisque non celantur.”
“ – Claro, mas também sei que amor tenebras infundit. Além do que, também percebi que você conhece bem nosso sistema penal e sabe que eu não posso condená-lo por um crime cujos motivos não foram apurados.”
“ – Mas eu não sei o motivo. Sei só o resultado...”
“ – Basta ! Estamos todos cansados. Vou adotar o processo sumário...”
Processo sumário ? então ele e Carolina seriam condenados sem nenhum direito a defesa ? Será que teria pelo menos a chance de recorrer à corte de direitos humanos em Haia....
“ – Na condição de juiz de direito dessa comarca e de acordo com as atribuições a mim concedidas pela constituição da República Obscurantista de Cardamomo, eu decreto que o casal receba imediatamente o certificado de casamento e, ato contínuo, sigam para o exílio, notem bem, eu disse exílio e não idílio, em qualquer país onde essa aberração seja tolerada. Delegado, pode encaminhar os detentos.”
Na saída ainda tentou perguntar ao delegado qual era o nome do juiz, mas não obteve resposta. Passou o resto da vida feliz ao lado de Carolina, exceto por aquela voz que o atormentou todas as noites.

Comentários

Anônimo disse…
Será que isso não aconteceu em 1960 e Carolina estava grávida? seria mais sensato.Casar pode ser um terror para alguns e o paraíso para outros.Mantenha os ouvidos em off, para o casamento ficar on.
Anônimo disse…
Gosto de chegar cedo, para ler apenas o que você escreve, muitos comentários anteriores alteram o conteúdo dos meus, é assim que mantenho meus olhos e mente em off.
Unknown disse…
bem, serve pra dar uma continuação aos contos de fada...? a palavra condena, mas apesar dos pesares, dizem os entendidos que na prisão são servidas três refeições diárias...

bijim
Anônimo disse…
Isso nas 'melhores' prisões, porque nas piores, não é servida refeição nenhuma! rsrsrsrs... Mas, é sempre bom se manter ligado nas coisas, senão você 'dança'...

Bjs, bjs...
Taty disse…
Não li, vou passar pra outro blog.

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