Tragédia pronominal

Dagoberto era filho de um daqueles professores de português da velha guarda. Cresceu ouvindo o pai falar da deterioração da língua, dos absurdos neológicos, das aberrações estrangeiristas, da multiplicação dos solecismos. Nunca chegou a ser um radical como seu pai, mas se tornou um homem viciado em mesóclises.

No começo os colegas achavam que ele era um cara engraçado. Quem mais referir-se-ia à lição de casa dizendo: estudá-la-ei. Depois de um tempo aquilo perdeu a graça. Acabou sem amigos.

Apesar de saber que sua mania incomodava os outros não conseguia livrar-se dela. Optou por uma carreira onde não precisasse falar muito mas onde o conhecimento da língua fosse importante. Foi ser revisor de uma editora. Recebia o seu trabalho, corrigia as provas e devolvia com suas anotações. Mal saia de sua sala o dia todo.

Certa manhã, seu chefe veio lhe apresentar a nova produtora gráfica da empresa. Laís era o seu nome. Foi amor recíproco, à primeira vista. Começaram a se encontrar. Assim como em outras situações, Laís também achou que Dagoberto era um cara muito engraçado. De certa forma, até exótico. Adorava quando ele dizia que amá-la-ia até o final dos tempos.

Até o dia em que, na cama, ele soltou uma mesóclise em pleno ato. Aí ela achou que era demais e pediu que ele tentasse se controlar.

Por amor, Dagoberto refreou a língua. Era inimaginável perder Laís em função daquilo.

Quando sentia que as palavras iam saltar mesocliticamente da sua boca, ele interrompia a frase. Laís estranhou um pouco, mas entre o silêncio e o vício, ficava com o primeiro.

Marcaram o casamento. Juntos trataram de todos os preparativos. Um casal de pombinhos felizes.

Tudo corria bem, até o padre se dirigir a Dagoberto e fazer a pergunta clássica: Dagoberto, aceita Laís como sua legítima esposa....

Ele não teve dúvida e disse em alto e bom som: aceitá-la-ei.

Laís ficou rubra. Olhou nos olhos de Dagoberto. Enfiou o ramalhete na sua boca e o amarrou com a grinalda e saiu batendo os pés pela nave da igreja.

Dagoberto livrou-se da mordaça e gritou: Perder-te-ei, mas jamais transformar-me-ás num medíocre proclítico.

Comentários

O problema dos vícios de linguagem é que a gente nem percebe...

beijos de sábado

Vilma
JAIRCLOPES disse…
Genial, o mesoclisismo é um vício que deveria ser combatido a golpes de gramática, é quase tão pernicioso quanto ao gerundismo. Gostei do texto e do blog, vou acompanhá-lo. Ou, como diria Jânio Quadros, acompanha-lo-ei. Abraços, JAIR.
clau disse…
A lingua é uma coisa viva, todos sabemos.
Mas o dificil é estar presente qdo parece ser assassinada e, pior ainda, qdo teima em se manter parecendo uma morta...
Hihihi.
Bjs!
Ana disse…
Adoro mesóclises!!

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