Júlia
Morto. Para a surpresa de todos ele fora encontrado na cadeira da sala com a televisão ligada, alguns cigarros apagados no cinzeiro e um copo de leite caído no chão. Pensaram no coração, um ataque súbito. Mas era pouco provável, apesar de fumar sempre tivera uma vida atlética e nunca descuidara da saúde. Suicídio ? Impossível. Ele andava muito feliz nos últimos tempos. Quem o encontrou foi Rosângela. Pensou que estivesse dormindo. Desmaiou quando notou o acontecera. Quando voltou a si chamou os amigos. Depois a polícia.
A autópsia não acusou absolutamente nada. Perplexidade. O corpo demorou dois dias para ser liberado pelo IML, os médicos se recusavam a assinar o atestado de óbito. Mas tinha de ser enterrado. Acabaram indicando insuficiência cardíaca. Ninguém acreditou. A causa da morte não estava no seu corpo.
Naquela noite Gérson havia chegado cedo em casa, pensara em ligar para Rosângela para irem ao cinema, acabou desistindo. Teria de acordar cedo no dia seguinte e os programas com Rose sempre acabavam tarde. Começou a ler um livro de Cortázar. Júlia, sua gata, se alojara no seu colo e ele a acariciava. Pelos negros que se eriçavam suavemente. A história lembrou-o de tempos passados quando trabalhava como jornalista em Limeira. Alguém que lia as suas crônicas se apaixonou por ele.
Tentaram vasculhar a casa para encontrar algo que levasse a alguma conclusão. O pouco que encontraram não dizia muita coisa. Rascunhos espalhados na escrivaninha com apontamentos sobre a tese que pretendia defender. Um poema dedicado a Rosângela. Algumas observações sobre os contos de Poe. Dentro do livro de Poe um bilhete escrito numa folha do Hotel 4 Rodas. “Fui para o meu quarto. Beijos. Cláudia”. Águas passadas pensou Rose.
Era formado em filosofia e se especializara em história da arte. Acreditava na vida como uma experiência estética. Dizia que a vida se transformava como os movimentos artísticos. Kierkgard. Lia incessantemente e se recusava a concordar com ele. Estava na fase dadaísta da sua vida.
Rose, inconformada com o acontecido, pensou em contratar um detetive para investigar o caso. Depender da polícia era besteira. Comentou o caso com uma colega da faculdade que se interessou pelo assunto. Resolveram investigar juntas. Lia, a colega, chamou seu irmão, Hugo, para irem juntos ao apartamento de Gérson e começarem a pesquisa. Antes de chegar pararam num barzinho e discutiram como iam trabalhar. Sistematizaram a investigação e foram.
Depois de formado fora para Limeira atrás de uma namorada. Não tinha nada para fazer como filósofo. Começou a escrever crônicas e crítica de arte no jornal local. Foi quando se interessou pela estética e pela sua ausência em torno dele. Foi fazer mestrado na Unicamp. Defendeu tese sobre Marcel Duchamp. A vida andava surrealista. Brigou com a namorada. Voltou para São Paulo.
Lia investigava os livros, pegava um a um e vasculhava as páginas. Rose tentava descobrir alguma coisa no quarto, nos bolsos, nas gavetas. Hugo ficou na sala. Pouca coisa sobrara ali depois da passagem da polícia técnica. Sentou na cadeira onde o corpo fora encontrado, ligou a TV e começou a fumar um cigarro. Viu o livro em cima da televisão, pegou-o e começou a folheá-lo. Não gostava de Cortázar. Pouco depois, Rose entrou na sala. Lembrara de uma coisa estranha. Júlia, a gata, havia desaparecido. Nenhum vestígio.
Dava aula numa faculdade particular e prosseguia seus estudos, pretendia conseguir o doutorado até o final do ano. Uma filosofia de vida. Pretendia implantar uma filosofia de vida baseada na estética. Júlia, encontrara-a ainda filhote no meio da rua, resolveu levá-la para casa. O nome era o de uma canção dos Beatles. Conversava muito com ela. Gata preta de olhos azuis. A única amiga que ele considerava definitiva.
Tentaram encontrar a gata no prédio. Nada. Ligaram para o investigador que cuidava do caso e ele disse que não havia nenhum gato no apartamento quando a polícia estivera no local. Hugo pediu para Rosângela contar de novo como encontrara Gérson. Achou muito curioso o fato da televisão estar ligada. Afinal, ele estava lendo ou vendo TV ? Perguntou em que canal estava. Ela não prestara atenção, apenas lembrava que desligara o aparelho pois o volume estava muito alto. Foram até o arquivo de um jornal, Hugo queria ver a programação daquele dia.
Gostava muito de conversar pelo telefone, segundo ele evitava constrangimentos. Tinha horror de quem falava olhando para os seus olhos. Conhecera Rosângela na faculdade, era aluna da graduação, oito anos mais nova que ele. Ela sempre o procurava para ajudá-la nos seus trabalhos, boa desculpa. Gostavam de música clássica e ela sempre ia à sua casa para ouvir seus discos ou para ouví-lo tocando fagote. Ela achava um instrumento muito exótico. Uma noite ficou por lá. Foi difícil inventar uma boa história para contar em casa. Lia salvara a situação dizendo que ela passara mal e tinha ficado na sua casa.
O seu amor por Rosângela era estranho. Estava com ela e gostava dela mas, às vezes, tinha um impulso irresistível de não estar com ela. Traição nunca. Acreditava em fidelidade. Só que haviam horas em que queria ficar absolutamente só. Como naquela noite. Ficaria em casa com Júlia, seus livros e a televisão. Costumava ler com a televisão ligada, quando a vista cansava da leitura assistia algum programa. Júlia, no seu colo, de vez em quando também olhava para a TV.
Voltaram para o apartamento. Resolveram passar a noite lá. Lia e Rose dormiriam no quarto de Gérson. Hugo na sala. Ele se acomodou no sofá e colocou um disco na vitrola. Não conseguia dormir. Pegou o livro que largara na mesinha de centro e resolveu ler um pouco. Abriu no primeiro capítulo. As páginas estavam em branco. Sentou-se. Pulou algumas páginas. Em branco. O livro estava todo vazio, nenhuma letra impressa. Estranho, pensou, havia folheado o livro algumas horas antes e estava tudo no lugar.
Foi até o bar procurar algo para beber. Todas as garrafas estavam lá. Cheias de leite. Pensou em chamar as meninas. Preferiu não assustá-las. Encheu um copo. Sentou de novo. Não sabia se deveria beber. Lembrou que a autópsia não acusara a presença de nenhuma substância tóxica. Bebeu.
Pegou o livro de novo. Dessa vez tudo estava impresso. Mas não conseguia ler. Olhava para as letras e não conseguia concatenar as palavras. Ligou a TV, procurou algo interessante, sentou-se novamente. A televisão saiu do ar. Pegou o livro de novo. Vazio. No entanto, o copo de leite estava cheio e ele acabara de bebê-lo. Teve a impressão de alguém o observava. Ficou parado. Absolutamente parado. O copo caiu no chão. Estava morto.
Pela janela da sala, o vulto de um gato desaparecia na escuridão.
A autópsia não acusou absolutamente nada. Perplexidade. O corpo demorou dois dias para ser liberado pelo IML, os médicos se recusavam a assinar o atestado de óbito. Mas tinha de ser enterrado. Acabaram indicando insuficiência cardíaca. Ninguém acreditou. A causa da morte não estava no seu corpo.
Naquela noite Gérson havia chegado cedo em casa, pensara em ligar para Rosângela para irem ao cinema, acabou desistindo. Teria de acordar cedo no dia seguinte e os programas com Rose sempre acabavam tarde. Começou a ler um livro de Cortázar. Júlia, sua gata, se alojara no seu colo e ele a acariciava. Pelos negros que se eriçavam suavemente. A história lembrou-o de tempos passados quando trabalhava como jornalista em Limeira. Alguém que lia as suas crônicas se apaixonou por ele.
Tentaram vasculhar a casa para encontrar algo que levasse a alguma conclusão. O pouco que encontraram não dizia muita coisa. Rascunhos espalhados na escrivaninha com apontamentos sobre a tese que pretendia defender. Um poema dedicado a Rosângela. Algumas observações sobre os contos de Poe. Dentro do livro de Poe um bilhete escrito numa folha do Hotel 4 Rodas. “Fui para o meu quarto. Beijos. Cláudia”. Águas passadas pensou Rose.
Era formado em filosofia e se especializara em história da arte. Acreditava na vida como uma experiência estética. Dizia que a vida se transformava como os movimentos artísticos. Kierkgard. Lia incessantemente e se recusava a concordar com ele. Estava na fase dadaísta da sua vida.
Rose, inconformada com o acontecido, pensou em contratar um detetive para investigar o caso. Depender da polícia era besteira. Comentou o caso com uma colega da faculdade que se interessou pelo assunto. Resolveram investigar juntas. Lia, a colega, chamou seu irmão, Hugo, para irem juntos ao apartamento de Gérson e começarem a pesquisa. Antes de chegar pararam num barzinho e discutiram como iam trabalhar. Sistematizaram a investigação e foram.
Depois de formado fora para Limeira atrás de uma namorada. Não tinha nada para fazer como filósofo. Começou a escrever crônicas e crítica de arte no jornal local. Foi quando se interessou pela estética e pela sua ausência em torno dele. Foi fazer mestrado na Unicamp. Defendeu tese sobre Marcel Duchamp. A vida andava surrealista. Brigou com a namorada. Voltou para São Paulo.
Lia investigava os livros, pegava um a um e vasculhava as páginas. Rose tentava descobrir alguma coisa no quarto, nos bolsos, nas gavetas. Hugo ficou na sala. Pouca coisa sobrara ali depois da passagem da polícia técnica. Sentou na cadeira onde o corpo fora encontrado, ligou a TV e começou a fumar um cigarro. Viu o livro em cima da televisão, pegou-o e começou a folheá-lo. Não gostava de Cortázar. Pouco depois, Rose entrou na sala. Lembrara de uma coisa estranha. Júlia, a gata, havia desaparecido. Nenhum vestígio.
Dava aula numa faculdade particular e prosseguia seus estudos, pretendia conseguir o doutorado até o final do ano. Uma filosofia de vida. Pretendia implantar uma filosofia de vida baseada na estética. Júlia, encontrara-a ainda filhote no meio da rua, resolveu levá-la para casa. O nome era o de uma canção dos Beatles. Conversava muito com ela. Gata preta de olhos azuis. A única amiga que ele considerava definitiva.
Tentaram encontrar a gata no prédio. Nada. Ligaram para o investigador que cuidava do caso e ele disse que não havia nenhum gato no apartamento quando a polícia estivera no local. Hugo pediu para Rosângela contar de novo como encontrara Gérson. Achou muito curioso o fato da televisão estar ligada. Afinal, ele estava lendo ou vendo TV ? Perguntou em que canal estava. Ela não prestara atenção, apenas lembrava que desligara o aparelho pois o volume estava muito alto. Foram até o arquivo de um jornal, Hugo queria ver a programação daquele dia.
Gostava muito de conversar pelo telefone, segundo ele evitava constrangimentos. Tinha horror de quem falava olhando para os seus olhos. Conhecera Rosângela na faculdade, era aluna da graduação, oito anos mais nova que ele. Ela sempre o procurava para ajudá-la nos seus trabalhos, boa desculpa. Gostavam de música clássica e ela sempre ia à sua casa para ouvir seus discos ou para ouví-lo tocando fagote. Ela achava um instrumento muito exótico. Uma noite ficou por lá. Foi difícil inventar uma boa história para contar em casa. Lia salvara a situação dizendo que ela passara mal e tinha ficado na sua casa.
O seu amor por Rosângela era estranho. Estava com ela e gostava dela mas, às vezes, tinha um impulso irresistível de não estar com ela. Traição nunca. Acreditava em fidelidade. Só que haviam horas em que queria ficar absolutamente só. Como naquela noite. Ficaria em casa com Júlia, seus livros e a televisão. Costumava ler com a televisão ligada, quando a vista cansava da leitura assistia algum programa. Júlia, no seu colo, de vez em quando também olhava para a TV.
Voltaram para o apartamento. Resolveram passar a noite lá. Lia e Rose dormiriam no quarto de Gérson. Hugo na sala. Ele se acomodou no sofá e colocou um disco na vitrola. Não conseguia dormir. Pegou o livro que largara na mesinha de centro e resolveu ler um pouco. Abriu no primeiro capítulo. As páginas estavam em branco. Sentou-se. Pulou algumas páginas. Em branco. O livro estava todo vazio, nenhuma letra impressa. Estranho, pensou, havia folheado o livro algumas horas antes e estava tudo no lugar.
Foi até o bar procurar algo para beber. Todas as garrafas estavam lá. Cheias de leite. Pensou em chamar as meninas. Preferiu não assustá-las. Encheu um copo. Sentou de novo. Não sabia se deveria beber. Lembrou que a autópsia não acusara a presença de nenhuma substância tóxica. Bebeu.
Pegou o livro de novo. Dessa vez tudo estava impresso. Mas não conseguia ler. Olhava para as letras e não conseguia concatenar as palavras. Ligou a TV, procurou algo interessante, sentou-se novamente. A televisão saiu do ar. Pegou o livro de novo. Vazio. No entanto, o copo de leite estava cheio e ele acabara de bebê-lo. Teve a impressão de alguém o observava. Ficou parado. Absolutamente parado. O copo caiu no chão. Estava morto.
Pela janela da sala, o vulto de um gato desaparecia na escuridão.
Essse texto foi escrito originalmente em Francês como uma lição de redação que fiz na Alliance Française em 13 de setembro de 1984
Traduzido e revisado em 27 de Outubro de 2007
Comentários
... não sei bem como se chamaria isso, mas antes de vir aqui.. acabei de escrever um texto no multi sobre ..aha!
Não vou contar ... vá lá e leia..acho que tem uma certa sintonia com tudo isso aqui.
Quem sabe a Júlia não passou por lá...?!
Beijo Fábio... Parabéns!!
bijo de malmal
Vontade de saber mais..........
Parabéns, a veia já existe há tempos.........
Além de gostarmos de gatos e estarmos envolvidos com as questões das pessoas com deficiência, temos mais uma coisa em comum: ter estudado na Aliança Francesa.
Ótimo texto. Cheguei nele por curiosidade quando vi o "item" gato na sua lista de assuntos, na página de entrada do blog.
Devagar, vou descobrindo mais sobre você.
Grande abraço e parabéns por esse blog.
E a antiguidade do escrito colabora com um certo charme misterioso.
Além de me recordar o tempo que eu enchia cadernos e mais cadernos, em frances...
Hihihi!
Bjs!