A galera fantasma


Eu poderia simplesmente ter esquecido aquele sonho e tocado a vida em frente. Mesmo porque faltava apenas um semestre para o fim do curso e São Carlos não era uma cidade de todo ruim. Mas o pique era outro, o coração também. Larguei tudo. Hoje só me arrependo de ter demorado tanto para resolver .

Era um domingo. Eu e Mauro, colega com quem dividia a casa, resolvemos dar uma volta. Lívia, minha namorada, tinha ido passar o fim-de-semana com os pais em São Paulo. Eu não achara ruim.

Antigas latas de conservas serviram para preparar o almoço, acompanhado da última garrafa de vinho. Saímos depois de almoçar. Passamos na Federal (universidade, não polícia) onde encontramos um pessoal na piscina. Nada de novo. Sugeri que fossemos à casa de Edna beber um pouco de "frutilla".

Memórias. Coleção de fatos que se acumularam em pouco tempo. Hoje se refazem como uma coleção de fotos antigas encontradas num velho baú. Quando cheguei em São Carlos achei tudo muito estranho. O preconceito contra o interior ainda era forte e eu não conhecia ninguém além de uma menina que fazia pós em Biologia. Seis meses depois da minha chegada ela voltou para São Paulo para casar. No começo morei numa pensão de uma velha e gorda viúva que tinha a paciência curta com os estudantes. Sua comida, no entanto, era tão boa quanto a sua disposição para criar casos. Memórias.

Quando chegamos à casa de Edna, ela ainda estava com sono. Gisele, sua filha, estava na sala tocando "Le lac de Côme", como toda boa mocinha do século passado fazia. Bonita, sorriu quando entrei. Parou de tocar e veio me cumprimentar. Pediu que eu tocasse um pouco. Mesmo sem prática arrisquei alguma coisa. Nunca aprendi tocar "Le lac". Mauro me chamou. Edna estava na cozinha. Ele me perguntou se havia alguma possibilidade de eu não voltar para casa naquela noite. Disse que não tinha nada para fazer, mas dava um jeito. Pedi que me levasse em casa para pegar meu carro.

Memórias. Conheci Mauro quando mudei da pensão para uma república de estudantes. Ele estudava Física e dividia o quarto comigo. Através dele conheci Lívia. Saímos para um concerto na universidade. Em pouco tempo estávamos juntos. Fatos passados. Fotos passando. Memórias.

Comecei a pensar no que fazer para passar a noite fora. Mauro certamente teria uma noite agradável com Edna que, apesar de ser muito mais velha que nós, era uma mulher atraente. Ficara viúva há três anos e se dedicava à filha , de quinze. Lembrei de uma amiga que não via há alguns anos. Cláudia. Morava em Araraquara, setenta quilômetros de São Carlos. Às seis e meia estava na estrada.

Memórias. A estrada era uma velha conhecida. Antes de alugar a casa com Mauro o único jeito de passar a noite com Lívia era sair da cidade. Na república era impossível. Na sua casa também. Ao luar não era nosso estilo. A solução era um hotelzinho em Ribeirão Preto. A primeira vez foi cômica. Chegamos ao hotel como se fossemos casados, bagagem incluída. O porteiro nos olhava com suspeitas. Deixamos as malas no quarto e fomos beber alguma coisa. Bebemos todas. Na volta o quarto girava como uma montanha-russa. Ríamos da nossa nudez. Deitamos e dormidos tão profundamente que esquecemos o que íamos fazer. Na manhã seguinte acordamos rindo. Da nossa bebedeira. Do nosso esquecimento. Do pudor de Lívia ao se ver nua ao meu lado. Da mútua virgindade. Das trapalhadas na cama. Memórias.

A placa indicava Araraquara a um quilômetro. A noite clara anunciava o calor da cidade. Fui direto para a casa de Cláudia. Me perdi. Depois de tanto tempo tinha esquecido o caminho. Telefonei. Ela me explicou o caminho. Ela me recebeu surpresa com a visita inesperada. Só ela e o irmão estavam em casa. Sentamos na sala em desordem porcausa de uma reforma. Conversamos até de madrugada. Expliquei como tinha resolvido ir para lá. Mostrei alguns dos meus poemas. Ouvi suas histórias. Dormi no sofá da sala.

Acordei no meio da noite, nem lembro bem porque. O relógio indicava quatro horas.
A luz do quarto de Cláudia estava acesa. Não resisti a curiosidade de ver o que ela fazia aquela hora. Lia meus poemas. Me convidou para entrar. Sentei ao seu lado na cama. Ela apagou a luz.

Memórias. Os sonhos são memórias daquilo que gostaríamos de ter vivido. Lembrei do mar. O mato e o cheiro de terra molhada de chuva. De um acampamento com Mauro. Não havia pessoas no meu sonho. Só eu. Olhava o horizonte esperando uma galera fantasma que me levaria a outros mares. Outros matos. Outros cheiros de terra molhada. Memórias.

Acordei assustado. Estava sozinho. Encontrei Cláudia e seu irmão tomando café. Ela me olhou com um olhar de cumplicidade de que tudo estava sob controle. Seu irmão não percebera nada.Voltei para São Carlos antes do almoço com a certeza que não demoraria tanto para visitar Cláudia novamente.

Ao chegar em casa vi o carro de Mauro na garagem. Hesitei mas acabei entrando em silêncio. Alguém estava na cozinha. Mauro ou Edna fazendo café, pensei. Ia até fazer uma brincadeira mas, ao entrar, fiquei parado na porta. Olhei perplexo. Era Gisele.
Engoli em seco e perguntei se o seu café tinha gosto de "Le Lac de Côme". Ela, sorrindo sem graça, não respondeu. Mauro ainda dormia. Fui para o meu quarto sem entender nada. Deitei e dormi.

Acordei com Mauro me chamando para almoçar. Ele tentou me explicar alguma coisa que não entendi. Nem acreditei. Contei o que fizera. Os fatos. Os sonhos. Fomos para a aula.

Não consegui prestar atenção em nada. No meio da aula lembrei que deveria ter ido buscar Lívia na rodoviária. Pensei em ligar. Desisti. Ela devia estar furiosa. Voltei para casa . Comecei a falar para Mauro que eu ía desistir de tudo. Precisa ir para o mar. Ele me contou a verdade sobre a noite anterior. Ele, Edna e Gisele sairam . Edna encontrou amigas e pediu que ele levasse Gisele para casa. Ele levou para a casa errada. Edna estava furiosa. Gisele apavorada. Disse que ia comigo até o clima melhorar. Telefonei para Cláudia e a convidei para ir junto. Ela não pensou duas vezes. Chegamos ao mar uma semana depois. Escrevi para Lívia explicando tudo.

Mauro voltou para São Carlos um mês depois. Sua última carta foi o convite para o casamento dele com Lívia. Não sei se vou. Cláudia não aguentou mais que um ano. Mora em São Paulo, trabalha numa escola.

O mar continua o mesmo. O mato está um pouco destruído. A terra cheira forte a cada chuva que cai. A galera fantasma ainda não chegou mas, a esperança é maior e o sonho persiste. Memórias apenas. Nada mais.

Comentários

Anônimo disse…
Nossa, a quantas memórias vc me fez remeter lendo seu conto....Eu sim, morei em São Carlos, estudei na Federal (não na polícia, na universidade...rs...) E minha filha foi feita e nascida em São Carlos....tinha uma grande amiga em Araraquara e quando fomos visitá-la nos perdemos e tivemos que ligar para ela que nos ensinou o caminho.....só não fui ao mar....ainda não.....
Unknown disse…
Gostei da forma que estruturou o conto, li de duas maneiras, ele todo e só onde vc diz memórias...bom isso.
A Livia voltou ao interesse primeiro e o narrador tb..o demorado mar? Espera a galera, e a galera? embarcará?

bijim de fim de findi
malmal
Anônimo disse…
Isso me fez lembrar um desenho que passa na tv: "A mansão mal assombrada para amigos imaginários"
Taty disse…
cansei de ler.........
Anônimo disse…
....no balanço da galera...delicia de leitura.
Beijo grande Fabio.
Alice

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