Conto de fadas

Nunca tinha dado muita importância às janelas do prédio vizinho, apesar da pouca distância que estavam da minha. Voyeurismo nunca foi meu ponto fraco, e esse negócio de ficar olhando escondido atrás das cortinas sempre me pareceu coisa de adolescente.

Até o dia em que a sala estava com as cortinas escancaradas e, da minha, janela, vi um vulto feminino no escuro de um quarto. Não dei muita atenção mas, quando passei novamente pela sala a vi no mesmo lugar, olhando, achava eu, na minha direção.

Aquilo me incomodou. O que é que aquela mulher tanto olhava em direção à minha casa? E por quê com tamanha concentração. Fechei as cortinas e fui dormir encafifado.

Na manhã seguinte não resisti e fui olhar. Ela ainda estava lá. Com a luz do dia me dei conta do meu rídiculo, era uma figura de uma silhueta presa na parede. Só um rosto desenhado até a linha do pescoço. Ri de mim mesmo e fui trabalhar.

Contei a história para alguns colegas que também se divertiram às minhas custas. Estranhamente eu não conseguia tirar a imagem da minha cabeça.

Naquela noite voltei a observá-la, novamente sozinha na penumbra. Tinha os traços finos, o cabelo penteado à moda do século XIX. Mesmo sem ter olhos dava a impressão de estar olhando para mim. Coloquei a cadeira na frente da janela e fiquei olhando. Só quando me toquei que alguém de verdade poderia entrar no quarto e me ver naquela situação é que saí de lá.

O que não me impediu de ir olhá-la sempre que passava pela sala.

Depois de algumas semanas eu já a conhecia em detalhes, Sabia a inclinação exata de cada traço. Até tinha dado um nome para a figura. Anita. Chegava mesmo a cumprimentá-la a cada vez que a via e não demorou muito comecei a conversar com ela.

Sim, conversar. Apesar dela não emitir nenhum som, eu ouvia suas respostas e comentários a respeito do que eu falava. Um dia ela apareceu com brinco fixado na altura do que seria a sua orelha. Eu elogiei. Tive a impressão de que ela me sorriu.

Minha amizade com Anita corria às mil maravilhas até o dia em que uma mulher de verdade entrou no quarto. Virei-me rapidamente e saí de perto da janela.

No dia seguinte Anita me explicou que aquela era a sua dona, segundo ela uma mulher excepcional. Sensível, inteligente, bonita. Me perguntou se eu não queria conhecê-la. Sabia que eu morava sozinho e sua proprietária também. Eu ainda guardava um pouco do meu bom senso e achei que seria um absurdo ser apresentado a uma mulher por uma silhueta.

Anita se ofendeu com aquilo e ficou dias sem falar comigo. Mesmo assim eu voltava todas as manhãs e noites e tentava puxar papo. Algumas vezes vi de relance a dona de Anita, realmente uma mulher muito bonita. De qualquer forma, quando via que Anita não estava sozinha eu não ficava olhando.

Uma noite, ao chegar em casa, o porteiro me entregou a correspondência e um envelope com o meu nome escrito à mão. Abri no elevador e empalideci de tal forma que o vizinho do 9º, que subia comigo, perguntou se eu estava passando bem. Disse que sim e desci no meu andar.

O bilhete era de Euterpe, a dona de Anita. Ela dizia que a silhueta tinha falado de mim para ela e, apesar de isso parecer absurdo, ela queria conhecer outra pessoa que conversasse com silhuetas. Me convidou para um café numa livraria próxima.

Quando cheguei ela estava sentada no fundo da livraria olhando gravuras de paisagens. No momento em que nossos olhares se cruzaram deu para perceber que alguma coisa diferente acontecia. Ela me chamou para olhar os quadros reproduzidos no livro.

Conversamos longamente e, depois de muitas xícaras de café, eu levantei e beijei Euterpe. Ela sorriu e me disse que aquilo parecia um conto de fadas. E era mesmo.

Na história escrita por uma fada chamada Anita. o amor jamais teria fim.

Comentários

Que delícia, ler histórias lindas como essa...

beijos de sábado
Juliana disse…
Once upon a time, in a far away land lived a...
clau disse…
Olha que esta estoria dava um belo enredo para um filme, heim...?!
Gostei.
Bjs!

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