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Mostrando postagens de fevereiro, 2010

Mala para um

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Como, se na desordem do armário embutido Meu paletó enlaça o teu vestido E o meu sapato inda pisa no teu (Chico Buarque) Maurício chegou em casa, sentou na sua cadeira de balanço, fechou os olhos e viajou em direção a outros planetas. Nunca tinha se sentido daquele jeito e o que ouvira naquela tarde mudava toda a sua vida. Ele sempre fora uma pessoa independente. Fazia questão de ter as suas coisas, organizadas do seu jeito. Ele mesmo se encarregava da arrumação do seu quarto, da limpeza do seu banheiro. Nem o ralo deixava que a empregada limpasse. Fazia qualquer coisa para que ninguém tirasse do lugar aquilo que ele, metodicamente, tinha colocado aonde lhe parecia melhor. Nem mesmo durante o tempo em que morou com Fátima deixava que ela assumisse o seu lugar na ordem das coisas. Mais do que qualquer outra coisa, existia um tema onde ele jamais admitira nenhuma contestação: a sua mala era a sua mala. Fosse para uma viagem curta ou longa, ele jamais dividira a sua mala com quem quer q...

A minha vingança

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Hoje eu vou escrever o que penso sem nenhum tipo de prurido. Aliás, estou com um comichão danado para soltar o verbo de forma que meus desafetos tremam nos seus receptores dérmicos e mucóticos. Quero me transformar no agente irritante de todas as terminações nervosas desmielinizadas. Que cada um de meus êmulos sejam atacados por sensações desagradáveis, especialmente durante a noite quando elas acontecem com maior intensidade. Que a liberação de histamina seja abundante e não se limite à abundância, nem de forma primária, nem secundária. Que o círculo vicioso de prurido-arranhadura altere suas integridades cutâneas. Eu, de minha parte, não vou sequer me ruborizar. Meus inimigos fiéis, que sejais escoriados e despigmentados. Sejam inundados de escabioses sem direito a corticosteróides. Minha vingança será urticária e infecciosa. Quiçá neuropsicogênica E eu quero mais é me coçar de prazer.

Diferenças

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Mário e Elena se amavam como nunca nenhum dos dois amara antes. Como nenhum outro ser humano amara antes e, mesmo se existissem seres em outros cantos do universo, eles também não conseguiriam chegar perto do sentimento que os unia. Não eram almas gêmeas, eram um só. Unidade que não vinha das milhares de características que tinham em comum, mas principalmente da união das suas diferenças. E não eram poucas as diferenças, nem se concentravam em coisas sem importância, algumas delas aconteciam em questões muito sérias. Mário valorizava muito o impacto do que fazia em todo o seu entorno. Elena não. Para ela poucas pessoas importavam de verdade e só essas eram objeto do seu cuidado e da sua preocupação. Se outros se escandalizassem com o que ela fazia, ela não ligava. Mário sim. Mário também era mais sensível aos problemas que enfrentava. Cada um, por menor que fosse, o incomodava sinceramente. Além do que, ele acreditava que não existiam questões que fossem insolúveis. Se, na forma, ele, ...

Agosto

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Sofia estava emocionada. Nem fazia tanto tempo assim que namorava Alberto, mas lhe pareciam décadas, quando finalmente ele a pediu em casamento. Era o sonho da sua vida. E nem era só o sonho do casamento em si, mas o fato de que ele era o homem que mais se aproximava da sua visão de príncipe encantado. A sua excitação era tão grande que, ela que nunca bebia, aceitou brindar com uma taça de champagne. O que não previa era que ia engasgar no segundo gole. No momento em que levava a taça aos lábios ele afirmou que casariam em Agosto, no mesmo dia que tinham casado seus pais. Voou Veuve Clicquot por toda mesa, até mesmo na gravata de Alberto. Ele apressou-se em socorrê-la. Ela demorou alguns minutos para se recompor fisicamente. Mentalmente se sentia como se arrastada por uma violenta corredeira. Agosto? Ela pensava. Justo Agosto, o mês das assombrações , quando as almas de outros mundos gemem e arrastam correntes. Quando os fantasmas balançam as camas dos que dormem e aparecem pedindo sac...

A mulher que não sabia fingir

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Quando Sílvia chegou em casa naquela noite ela já estava decidida a acabar com tudo. Todas as tentativas já tinham sido feitas. Ela não tinha mais recursos a recorrer. Tentara se impor, se rebaixar, discutir, ignorar. Nada funcionara. De certa forma tinha se conformado, a seu modo, é claro. Conformismo não era uma palavra ou atitude do seu repertório. Ao invés de investir no seu casamento ela voltara a investir em si própria. Isso até teria funcionado se Valente continuasse a ser apenas o que era, um sujeito insensível. Pelo jeito, só isso não o satisfazia. Incomodado com a percepção de que ela era feliz apesar dele começou a beber mais, a culpá-la por fracassos que eram seus e a destratá-la em público. Naquela tarde ele tinha atingido o seu auge. Sílvia ligou para Andrea e contou tudo que Valente tinha feito com ela, disse que ia falar com ele em seguida. Andrea pediu que ela tivesse paciência, ele estava bêbado e poderia ser perigoso. Além disso, três dias depois seria o casamento da...

A morte de Hades

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As Cócegas eram ninfas que moravam no lado oposto do Olimpo. Por serem irmãs muito risonhas eram consideradas como mulheres pouco sérias, ainda que muitos faunos, deuses e semideuses as desejassem ardentemente. Knismesis, a mais velha, costumava ser mais sutil nas suas ações, provocando leves risos, mas jamais gargalhadas. Gargalesis, por outro lado, era completamente isenta de controle e, quando se aproximava de alguém não resistia a exercer sua pressão em diferentes partes do corpo da vítima até que a mesma se debulhasse em lágimas, de tanto rir. Ainda que alguns bebedores de néctar as reprovassem, eles não negavam que as irmãs faziam parte do jogo social da urbe mitológica. No entanto, reprovavam drasticamente que outros seres se aproximassem delas para descobrir os seus segredos. Numa das reuniões do conselho diretor do monte grego, Hades, que tinha um mal humor que era de morte, convenceu Zeus que aquilo não poderia continuar daquele jeito e fez aprovar um projeto de lei proibindo...

Uma história de amor

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Una bandada de mares tus labios, sal ida que no encontraré en estas palabras. Jacob Lorenzo... Para "O", de quem apenas transcrevi a história William nunca imaginou que aquilo pudesse ter acontecido com ele. Não porque não acreditasse no amor, sempre fora um romântico, mas o que sentia agora transcendia tudo que sentira antes. Gabriela mudara a sua vida. Mudara sua percepção do que era amar. Mudara até mesmo seus conceitos temporais a respeito do mais nobre sentimento. Descobriu que a amava quando ele nem sabia que um dia ela entraria na sua vida. Mesmo antes que ela existisse, até porque ela só veio à existência depois dele. Descobriu que a amava nos encontros intermitentes que tiveram, que ela era um sonho branco, salpicado de estrelas. Descobriu que, sem saber, a amara acidentalmente nas ruas, nas escadas, nas casas. Seus olhos não a viam no meio da multidão. Ele só via uma coleção de rostos, e ela, mesmo no meio deles, ainda não dizia nada para ele. Até o dia que sua ima...

Contículo aliterado

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Em horas inda louras, lindas e lentas discutia duramente discursos dissonantes. Ela, lógicamente, levou os lauréis lógicos com branda brincadeiras nada burocráticas. Aliterava literalmente a letra litúrgica e, entre as vindas vendo varandas vazias me convenceu. Só gente genial pode homanegear as janelas do idioma, pátrio, profano ou até picaresco. Depois me disse docemente declarações de amor com ardor e sem temor. E beijou-me junto ao junco do janeiro findado e fugaz. Apaixonei-me perdidamente por perfeita pessoa. E me fundi numa felicidade infinita finalmente. Aliteração é uma figura de linguagem que consiste em repetir sons de sons consonantais idênticos ou semelhantes em um verso ou em uma frase, especialmente as sílabas tônicas.

Crescente

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Na sala do observatório Fernando se dedicava a estudar as fases da lua. Era um apaixonado pelos astros mas, desde os tempos em que cursava astronomia, ele se dedicava exclusivamente ao satélite terrestre. Inclusive estava na lista de candidatos da Nasa quando essa retomasse os projetos de viagens lunares. Já há alguns anos resolvera fazer um estudo compreensivo das fases da lua e, para isso, todas as noites acompanhava cada minuto de metamorfoses da mesma. Já tinha documentado diversos episódios atípicos, mas nada parecido com o que percebera naquela semana. Como era habitual, a lua tinha sua fase crescente durante uma semana, às vezes algumas horas a mais, outras a menos, mas nunca fugia desse padrão. Naquele dia percebeu que a lua crescente completara oito dias inteiros. E continuava crescendo sem chegar a ser lua cheia. Consultou outros colegas, escreveu para observatórios internacionais para verificar se tinham percebido o fenômeno. Surpreendeu-se quando as respostas começaram a ch...

Conticulóides marítimos

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Marina Quando André a viu andando pelos corredores do shopping num vestido azul esverdeado concluiu imediatamente que aquela era a mulher da sua vida. Sem pensar duas vezes abordou-a. Ela sorriu e lhe indicou o corredor da loja onde ele poderia encontrar uma roupa da mesma cor. Areia José sempre trazia na memória os gritos da sua mãe mandando que ele limpasse os pés antes de entrar em casa, nem esquecia da surra que levou no dia que, fugindo da chuva entrou com os pés enlameados. Por isso mesmo fez questão de ser o primeiro a jogar uma pá de terra sobre o seu caixão. Onda Angélica entrou na banheira e relaxou o corpo na água quase fervendo. Só não percebeu que esquecera a porta destrancada. Quando o zelador entrou junto com a empregada para ver o problema do sifão da pia ela quase teve um ataque e inundou todo o piso do banheiro Rochedos Januário pegou sua moto e saiu desesperado em alta velocidade. Acabara de receber o bilhete de azul de Clara. Pensou em se matar jogando-se de algum p...

A cor do som

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No vale do rio Konoronhkwa os dias corriam mansamente. As aves chilreavam e comiam insetos, as raposas regougavam e comiam as aves, os ursos bramiam e comiam raposas. No meio da miríade de sons e refeições nasceu Kohetstha, uma borboleta de asas coloridas de violeta e magenta. Kohetstha logo cedo aprendeu que a sobrevivência no vale estava diretamente relacionada com o silêncio. Sobrevoava a campina forrada de flores sempre da forma mais suave para não atrair predadores e coletava o néctar que sustentava sua atividade física intensa. Do outro lado do vale, Teiakiatonts, um macho de cor azul forte também vivia de forma reclusa e silenciosa e, apesar de gostar muito de cantar, ele só o fazia na solidão escura da toca que descobrira num tronco de árvore onde morava. Certa manhã uma tempestade se abateu sobre o vale. Os bichos fugiram em busca de abrigo, não foi diferente com Kohetstha. Levantou vôo com a intenção de voltar para casa, mas o vento a carregou para o lado de Konoronhkwa que e...

O tônus do amor

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Minha amada Nessa distância em que nos encontramos não paro de pensar em você. Te amo fibrilarmente, sejam suas formas estriadas ou lisas. Sinto falta do seus supinadores e dos seus flexores me envolvendo. Do perfume do seu esternocleidomastóideo. Nesse momento queria mesma era beijar seu trapézio e te acolher entre meu serreado e o meu radial. Lembro dos momentos em que afaguei seu bíceps femoral no escurinho do cinema, e permaneci invicto. O toque do seu perônio no meu tibial por baixo da mesa. Seu semitendinoso sobre meu vasto externo. O encontro do meu reto abdominal com seu pectíneo chegou mesmo a me provocar uma hipertonia momentânea. Não vejo a hora de tocar seus deltóides cubitalmente. Você não sai do meu temporal e me dá um frio no oblíquo... Quando voltar a sentir seus glúteos e seus gastrocnémios, meu costureiro flexionará o meu tendão. A forma grácil dos seus sartórios, a sedução de seus psoas atraem meu ilíaco ao seu piriforme. Que meus bucinadores encontrem seus orbicular...

Lírica gourmet

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No meio da noite assustado Da cama quase caí Com vontade de comer Pipoca com chantilly Fui prá cozinha voando Encontrei chá de pequi Não tinha ingredientes da pipoca com chantilly Vesti uma roupa qualquer Para a rua eu saí Em busca do meu desejo Pipoca com chantilly Em casa, abastecido O creme de leite bati Esquentei a panela Pipoca com chantilly Um prazer inominável Na alma eu senti Fui dormir confortado Pipoca com chantilly

Sinais de fumaça

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Jaciara conheceu Aondê quando caminhava junto ao rio que marcava o limite das duas tribos. A paixão foi imediata. Ele ficou encantado com os olhos de luar da moça e, como era um índio de hábitos noturnos, isso o fascinou. Ela retribuiu essa paixão de forma intensa e calorosa. Apesar das tribos não serem rivais, não era hábito daqueles índios de se casarem com pessoas de outras tribos. Jaciara e Aondê sabia disso e começaram a se encontrar secretamente. A cada encontro combinavam o próximo. Até o dia em que Aondê teve um contratempo e não apareceu no lugar marcado. Ficaram dias sem se ver por causa desse desencontro. Quando conseguiram se ver novamente concluíram que precisavam encontrar alguma forma de se comunicar à distância. Optaram por sinais de fumaça mas não poderiam usar o vocabulário das tribos senão todos ficariam sabendo do romance e isso poderia ser o fim de tudo. Combinaram alguns sinais que seriam só deles. Uma língua particular. E assim o fizeram. O que eles não poderiam ...

Dentes atque pedes asinini exordia amoris

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Conta-se que a rainha Coleóptera III, esposa do faraó Tutancamon - o belo, certo dia levou um tombo nas escadarias de Mênfis e, na queda, perdeu seis dentes da frente. O soberano preocupado com a aparência de sua consorte e com medo de ser denominado o faraó da banguela chamou todos os médicos do alto Nilo para resolver a questão. Um dos médicos que participava costumeiramente de congressos internacionais comentou a respeito de uma descoberta do oriente chamada dentadura Yagyu, era uma invenção feita em madeira tsuguê, árvore nativa do Japão. Empolgado, o monarca mandou que uma missão fosse até aquele país remoto e só voltasse com um exemplar que coubesse na boca da rainha. Os missionários jamais voltaram e, quando se deu conta disso Tutancamon mandou que os médicos fizessem uma dentadura de junco, uma vez que não encontraram nenhum árvore de tsuguê em todo o reino. Não só, não encontraram, como não faziam a menor idéia do que seria uma árvore desse tipo. A dentadura de junco não resis...

Borralheira

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Nelly abriu a porta ainda sem fôlego. Jogou a bolsa e suas coisas em cima da mesa da sala, sentou-se um pouco e pensou em tomar um banho. Concluiu que não era de relaxamento que ela precisava, nunca estivera tão disposta e estava cheia de energia. Foi para a cozinha. Separou ingredientes e começou a trabalhar. Mexendo a comida nas panelas ela mexia nos cabelos dele. Cada tempero lembrava o seu sabor. Aromas, gostos, texturas. Era como se suas mãos implorassem por um toque que lembrassem os momentos em que tocara o corpo do amado. Ora trêmulo, ora firme. Ora ardendo, ora tépido. Seco, úmido, molhado, ensopado de suor e das gotas do chuveiro. Em todas as situações sempre delirante e apaixonado. Cozinhando ela o amava. O calor da cozinha aumentava à medida que as panelas soltavam vapores. Os ingredientes passando por mudanças químicas, mudavam de cor, de consistência. Tudo fervendo, tudo ardendo. Mesmo assim Nelly ainda aumentava a potência da chama para sentir o calor grudar na sua pele,...

Meu reino por um pastel

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Manoel, apesar de sua origem lusitana, sempre preferiu um bom pastel a um bolinho de bacalhau. Sua experiência com o acepipe remontava à sua mais tenra infância quando sua mãe, em umas suas incursões à feira, carregou o fedelho e, para fazer com ficasse quieto, comprou-lhe um legítimo pastel de vento. O miúdo teve delírios orgiásticos ao saborear a fina massa de farinha com água. Muito tempo depois descobriu que um dos segredos da mistura era adicionar um bocadinho de cachaça o que, provavelmente tenha gerado aquela sensação. Nada, porém,fez com que ele perdesse o encanto pela iguaria. Já na sua adolescência, Manoel começou a fazer experiências na criação de receitas de pastéis. Testou novas proporções na mistura da massa, introduziu outras bebidas alcóolicas e alternou variedades de óleo. Mas, o que realmente surpreendia nas criações do jovem galego era a sua combinação de recheios. Chegou a fazer pastéis com 203 ingredientes diferentes. Quando chegou à juventude, contrariando a tradi...

Eu moldura, ela pintura

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Se a noite está escura Difícil o caminhar Sua mão vai me guiar Eu moldura Ela pintura Seja tempo de clausura Esperança se apagar Sei como chegar Eu moldura Ela pintura Se há risco de ruptura Sem brilho no olhar Sua voz a iluminar Eu moldura Ela pintura Se não houver cura Algum mal me atacar Não me deixa desabar Eu moldura Ela pintura O amor sempre perdura Infinito além do mar Eterno apaixonar Eu moldura Ela pintura