Confesso que traí
Não conheço nenhum crime que não seja passível de perdão ou justificativa. Ladrões podem alegar que passavam necessidade. Assassinos, legítima defesa. Mentirosos, constrangimento ilegal. De todos os crimes, no entanto, ninguém perdoa a traição - de qualquer espécie. Ainda que alegue que perdoou, nunca esquece, e o fato sempre é lembrado quando necessário.
Trair é algo considerado tão sério que a traição contra a pátria é chamada, no código penal militar de alta traição (não, não existem nem a baixa, nem a média traição). A religião, seja ela qual for, sempre tem um caminho de perdão ou reparação de faltas e pecados, mas trair a fé é indesculpável, tem até termo específico : apostasia. Já houve um tempo que maridos traídos matavam as mulheres infiéis em nome da honra - o crime do assassinato era considerado menor que o crime da traição (só para um lado é claro...se a mulher matasse, iria para a cadeia). Aliás, esse é o cerne da questão. Outros crimes podem atingir bens materiais, ou o corpo de alguém, mas a traição atinge o orgulho, a honra, a auto-estima. As pessoas que traem seus próprios ideais costumam viver em eterno arrependimento.
E eu aqui tenho de admitir, cometi uma traição. Com todas as letras (ou quase todas). E traí ao melhor estilo italiano, cujo tão conhecido brocardo* "traduttori traditori" me relembra disso e me persegue. Pior, não foi a primeira vez, já tinha feito outras tentativas antes.
É verdade que, para me previnir, optei por trair alguém que já estivesse morto, até porque eu não acredito em almas penadas que venham me puxar as pernas no meio da noite.
Tradução é traição. segue abaixo minha confissão.
Rondels II
Stéphanne Mallarmé
Si tu veux nous nous aimerons
Avec tes lèvres sans le dire
Cette rose ne l’interrompe
Qu’à verser un silence pire
Avec tes lèvres sans le dire
Cette rose ne l’interrompe
Qu’à verser un silence pire
Jamais de chants ne lancent prompts
Le scintillement du sourire
Si tu veux nous nous aimerons
Avec tes lèvres sans le dire
Le scintillement du sourire
Si tu veux nous nous aimerons
Avec tes lèvres sans le dire
Muet muet entre les ronds
Sylphe dans la pourpre d’empire
Un baiser flambant se déchire
Jusqu’aux pointes des ailerons
Si tu veux nous nous aimerons.
Sylphe dans la pourpre d’empire
Un baiser flambant se déchire
Jusqu’aux pointes des ailerons
Si tu veux nous nous aimerons.
Redondilha II
Primeira versão
Se tua vontade for nos amaremos
Mesmo se teu lábio não falar
Estas rosas não impediremos
De um pior silêncio derramar
Mesmo se teu lábio não falar
Estas rosas não impediremos
De um pior silêncio derramar
Nem se um canto sibilante se lançar
Sobre teu sorriso cintilante iremos
Se tua vontade for nos amaremos
Mesmo se teu lábio não falar
Sobre teu sorriso cintilante iremos
Se tua vontade for nos amaremos
Mesmo se teu lábio não falar
Mudos, mudos, entre ébrios caminhemos
Qual Silfo purpúreo e ancestral nos vemos
Entre beijos que se rompem flamejantes
Entre os cumes alados e distantes
Se tua vontade for nos amaremos.
Qual Silfo purpúreo e ancestral nos vemos
Entre beijos que se rompem flamejantes
Entre os cumes alados e distantes
Se tua vontade for nos amaremos.
Segunda versão
Se for tua vontade nos amemos
Até quando teus lábios não disserem
Se muitas rosas não nos impedirem
Que um pior silêncio derramemos
Até quando teus lábios não disserem
Se muitas rosas não nos impedirem
Que um pior silêncio derramemos
Nem cantos se lançando sibilantes
Sobre estes teus sorrisos cintilantes
Se for tua vontade nos amemos
Até quando teus lábios não disserem
Sobre estes teus sorrisos cintilantes
Se for tua vontade nos amemos
Até quando teus lábios não disserem
Entre bêbados, mudos caminhemos
Como rubro Silfo em reinos bacantes
Entre beijos rompendo flamejantes
Aos cumes escarpados nos lancemos
Se for tua vontade nos amemos
Mallarmé , Stéphane . Poésies. Anecdotes ou Poémes . Pages diverses. Le livre de poche . Paris . 1984
*do Lat. med. Brocarda, sentenças de Brocardus, nome alatinado de Burckard, bispo de Worms, compilador de máximas, etc. s. m., sentença, axioma, princípio; máxima jurídica; aforismo, especialmente quando picante
*do Lat. med. Brocarda, sentenças de Brocardus, nome alatinado de Burckard, bispo de Worms, compilador de máximas, etc. s. m., sentença, axioma, princípio; máxima jurídica; aforismo, especialmente quando picante
Comentários
Traição de ideais, essa sim é dolorida, pesada e angustiante. O perdão ou a força para retomá-los (os ideais) só depende de nós.
E o que é a busca pelo "amor", pela satisfação primária, pelo pecado original, senão nossa constante traição aos nossos desejos e anseios?
Felizes os que traem, pois vão além da moral, dos valores e ética. Sendo que tudo isso é , também, totalmente questionávél, não é?
belo demais o poema, demais não, na medida exata..
bijim
malmal
Traiu, tá se sentindo culpado? Perdoe-se a si mesmo, antes de tudo.
Traiu, tá se sentindo bem? Viva a traição e os momentos gostosos deste ato.
Adorei o poema...
Muito linda as conexões.
Mas ainda acredito, que a própria vida é uma constante traição.
Abraços.
Gostei da primeirissima versão primorosa está, primorosa ficou!
abs
Mais do que ficar rivalizando, procuramos nos adequar e partir para o exercício, como num jogo de cartas (ou dados, em homenagem ao poeta), melhorando sempre a mão, procurando fazer melhor a cada dia, sem muito nhé nhé nhem...com nossas mulheres dividimos as atividades da casa, a atenção com os filhos, o espaço no campo do trabalho, do estudo, da pesquisa, do esporte...existe o consenso na escolha do lazer, do canal da tv, da cor do carro...tratamos elas sempre muito bem...cozinhamos (e bem!), servimos a bebida, criamos o clima, falamos palavras certas na hora certa...enchemos elas de carinho, mimos, presentes e atenção...oferecemos nosso pensamento, palavras, ouvidos, gozos e prazeres...desta forma, mais do que criar áreas de conflito, procuramos viver em paz, sem preconceitos...podemos deixar um comentário num blog, falar de amor, como vc fez hj, ou outra coisa qq, mas sempre numa direção: se não for para aperfeiçoar o silêncio, melhor não falar nada.
abração
manduca
Comentários mais dúbios e desconexos ainda. Ou será que sou eu a burrinha que não sabe ler nas entrelinhas?
(quando a burrinha finalmente entendeu a piada)
Por vezes sem medidas, sem lógicas ou explicações porque senão não acontece.
E o time passa, e com todo um conjunto de sensações essenciais para mim. Minha usina.
Não saio à procura de traições e nem saberia descrevê-las, mas ao mesmo tempo em que luto contra, eu avanço sobre elas como que sobre um abismo da liberdade sobre mim mesma.. rs, confusa? Acho que sou uma pessoa confusa simplesmente vivendo.
Un poème charmant même que mes lèvres disent et tes oreilles n'écoutent pas.
Beijo imenso!!!
Amei!