Tudo

Numa madrugada, ao despertar de sonhos inquietantes, George deu por si na cama transformado num gigantesco nada. Estava deitado sobre o dorso, tão etéreo que parecia revestido de gás hélio e, ao levantar um pouco a cabeça, não divisou o arredondado ventre sobre o qual a colcha dificilmente mantinha a posição e estava a ponto de escorregar.

E, de fato, acabou escorregando e tombando sobre o duro chão desatapetado da lateral da cama, mas não sentiu nenhuma dor, ou melhor, sentiu uma dor terrível, mas era muito diferente de qualquer dor que tivesse sentido em toda a sua vida. Doía-lhe a alma.

Levantou-se com dificuldade, mesmo não tendo peso algum e procurou um espelho. O do banheiro era o mais próximo dele. Tudo estava no lugar, o chuveiro, o vaso, a pia, as toalhas penduradas. Até mesmo o espelho estava onde sempre estivera, mas ele não aparecia nele. Achou que fosse um sonho e voltou para o quarto imaginando que, se voltasse a dormir, tudo voltaria ao normal.

Não conseguiu dormir e, nesse momento foi que ele entendeu que não estava delirando. Começou a rever seu dia, tentou entender o que poderia ter provocado essa transformação. Tinha sido um dia incomum, positivamente incomum. Passara muitos momentos felizes, estivera com as pessoas que mais amava.

Pensou em acordar Ana, mas achou que ela ficaria assustada com aquilo tudo. Olhou para a companheira na cama e ela também parecia estar tendo pesadelos, virava-se de um lado para o outro. George tentou pousar a mão sobre os cabelos da amada para acalmá-la, mas estava desmaterializado completamente para fazê-lo.

George continuava sendo um nada. Lembrou-se de que, no final da noite, tinham conversado sobre um comentário que ele fizera durante o dia que a tinha incomodado. Ele concordou que tinha se expressado muito mal e pediu desculpas, que ela aceitou.

Foi nesse momento que ele entendeu o que se passava. Ana tinha se magoado muito mais do que ele poderia supor. Enquanto não conseguisse resolver a situação, ele seria apenas aquele imenso nada.

George não tinha medos. A vida ao lado de Ana o fizera construir a capacidade de enfrentar qualquer coisa no mundo. Seu único e terrível medo era de perdê-la. Não se importava muito que as pessoas não lhe dessem valor, que só o procurassem quando precisavam de algo, que fosse um ser invisível no meio da multidão. Só não poderia ser invisível para ela.

E naquele momento era assim que se sentia. Entendeu que tinha feito uma grande besteira, que precisava da segurança dela. Ao invés de garantir sua tranqulidade, tinha lhe tirado o chão. Começou a chorar. Nem virou o rosto, um nada não precisava se esconder.

Queria acordá-la e pedir desculpas de novo. Queria abraçá-la e lhe dar todas as certezas que ele tinha dentro de si. Queria sentir que ela o amava em qualquer situação. Mas era apenas um nada miserável.

Perambulou o resto da noite pela casa. De tempos em tempos voltava ao quarto e ficava olhando para Ana, temia a chegada da manhã e o despertar dela. Quando ela acordasse, se ele continuasse sendo um nada, o que seria da sua vida?

Acabou cochilando no sofá da sala vencido pelo cansaço. Acordou com a mão de Ana segurando a sua mão. Olhou-a assustado. Ela lhe deu um beijo e lhe entregou uma xícara de café. Foi quando ele percebeu que recuperara sua forma original.

Ana perguntou o que tinha acontecido para ele estar dormindo na sala. Ele explicou tudo. Ela lhe deu um sorriso e disse que nem o nada poderia separá-la dela e que, se ele voltasse a se transformar num nada, ela seria nada junto com ele.

Além do que, ele deveria saber que eles não se pertenciam mais a si próprios. Ele que nem se atrevesse a desaparecer assim, sem pedir autorização.

Nunca um homem sofrera tamanha metamorfose. Transformado num ser com uma vida sempre feliz.

Comentários

Taty disse…
Ah, eu preciso de um homem assim!
Cris disse…
Ah, eu preciso aprender com a Ana, e saber perdoar mais facilmente...
Arimar disse…
Fábio.
Muito linda a Insanidade de hoje.
Beijos

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