O pecado da escuta



Dizem os relatos bíblicos que, no princípio, Deus criou Adão e Eva e os instalou no paraíso, local onde poderiam usufruir de todas as coisas, exceto comer do fruto de duas árvores: a do conhecimento e a da vida.

Como bons ouvintes, o casal escutou a recomendação e a obedeceu durante um tempo que as escrituras não definem a duração. Naquelas tardes fagueiras, à  sombra das bananeiras, debaixo dos laranjais! Como eram belos os dias. Eles escutaram e viram que isso era bom.

Até o dia que apareceu um certo diabo disfarçado de serpente e começou a sussurrar no ouvido de Eva que o fruto das árvores deveria ser muito melhor que qualquer outra jabuticaba que eles comessem, além disso, se ela provasse tal maravilha, ela se tornaria igual a Deus. Eva escutou atentamente esse discurso e não só experimentou do fruto proibido como também foi contar a novidade para Adão, que também escutou e também atacou a especiaria.

Cabum!! Apareceu o todo-poderoso e perguntou o que eles tinham aprontado (como se Ele já não o soubesse). Eles tentaram se esconder, mas não teve jeito, levaram a bronca e foram expulsos do jardim do Éden para sempre e perderam a mamata.

A partir daí tiveram que garantir as refeições com o suor do seu rosto, enfrentar chefes abusivos, ficar sem retorno dos recrutadores e candidatar-se a vagas de emprego em plataformas automatizadas. A vida virou um inferno. Concluíram que tinha cometido um grande pecado, o de escutar a serpente.

Com o passar dos milênios, seus descendentes, aos poucos, foram esquecendo da serpente, mas mantiveram no seu inconsciente coletivo a certeza de que escutar era pecado, e dos piores. À medida que o tempo foi passando desenvolveram um padrão (alguns chamam isso de evolução) que consiste em só se interessarem por aquilo que lhes diz respeito, e de só ouvirem o que manda o seu coração, até porque, depois de Freud, descobriram que a cabeça não apita lhufas.

Talvez por influência de alguns escritores vitorianos, apegaram-se aos monólogos, que é o padrão das conversas do nosso tempo. Eu falo, falo, falo (e sempre a meu respeito) e quando o outro se atreve a abrir a boca, eu finjo que estou ouvindo, mas nunca estou escutando (como se o robô do Will Robinson, estivesse falando: Pecado! Pecado!)

O hábito ataca até mesmo as conversas virtuais. Ninguém responde nada para ninguém, até porque ninguém vai prestar atenção, e quando o outro se cala, retomamos o nosso assunto a partir de onde tínhamos parado antes dessa brutal interrupção.

Alguns poucos descrentes do conceito de pecado ainda se aventam a escutar os outros, mas são raros. Outros insistem que precisamos reaprender a escutar, uma heresia inominável que atenta contra a pureza da não escuta.

Tudo por causa de Adão, que jogou a culpa na mulher. Ela, por sua vez, jogou a culpa na serpente. Mas a transferência de culpa é outra questão de inconsciente coletivo que fica para os próximos capítulos.

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