A ditadura das séries
Na minha adolescência e início de juventude a novela das 10 da rede Globo era considerada cult (em oposição às dos demais horários que eram consideradas bregas), especialmente porque eram aqueles que “transgrediam” nos temas políticos e de comportamento sexual, bastante reprimidos nos anos 70 e começo dos anos 80. A maior parte delas foi escrita por Dias Gomes, mas também incluía outros nomes importantes como Jorge Andrade.
Eu não assistia nenhuma delas. Por dois motivos básicos, o primeiro é que sempre abominei novelas, o segundo é que estudando de manhã, com aulas começando às 7h30 não dava para ficar acordado até tarde ou acabaria dormindo na sala de aula. O que me fazia um peixe fora d´água em muitas conversas.
Mais de quarenta anos se passaram e eu continuo nadando no seco por não acompanhar as novelas contemporâneas que ganharam o epíteto de séries (mas continuam sendo, formalmente, folhetins ao melhor estilo do século XIX). Inclusive as próprias novelas da Globo, depois passaram a se chamar de minisséries. Apesar de atualmente poder me dar ao luxo de dormir mais tarde, eu continuo abominando o gênero.
De qualquer forma, menos do que a questão de estar por fora da onda, o que me incomoda é a ditadura cultural das séries. Me explico.
Eu não sou exatamente uma pessoa afastada do mundo. Leio pelo menos dois jornais por dia (ainda que não assista aos jornais televisivos), acompanho publicações de uma infinidade de newsletters profissionais ou não, leio vorazmente muitos livros por ano, acompanho a cena musical de vários gêneros e até estou a par de alguns resultados esportivos. Ou seja, não sou uma pessoa a quem falta assunto para conversar.
O problema é que, seja lá qual for o assunto a respeito do qual esteja conversando, dez em cada dez vezes, sou obrigado a ouvir: “...ah, mas então você precisa ver a série X do streaming Y”. O que me leva à constatação de que o nosso repertório cultural está cada dia mais limitado a uma única fonte de entretenimento e de conversas.
Não que fosse tão diferente no passado quando elas também eram limitadas pela televisão ou pelas capas das revistas semanais, mas são cada vez mais raras as vezes que alguém me recomenda um livro, um artigo, um filme comum, talvez pelo fato de que sejam cada vez menos as pessoas que os consomem.
Para piorar, aquilo que nos é recomendado, seja pelo algoritmo do aplicativo ou pelos amigos e conhecidos, se resume àquilo que corresponde ao nosso gosto, aquilo que vamos curtir, sempre mais do mesmo, ou o que o filósofo Byung-Chul Han chama da Komaglozen (assistir sem parar), algo que ele compara a proliferação de células cancerígenas ou de acúmulo de gordura. E esse sem parar beira o limite, quando não o ultrapassa, de ficarmos inconscientes. Com isso o nosso universo experiencial torna-se, todos os dias, mais estreito, mais raso, mais emburrecedor.
Aqui também é uma raridade receber alguma recomendação que contraponha o que pensamos, que nos leve a questionar as nossas crenças e afirmações. Muitos acham que oferecer o contrário é provocação, outros tantos acham que receber esse tipo de sugestão é ofensivo.
Termino repetindo um trecho de Telemorfose do Jean Baudrillard que citei recentemente em outro texto: “...vale como metáfora universal do ser moderno enclausurado no seu espaço pessoal, que não é mais o seu espaço físico e mental, mas seu universo tátil e digital, o homem binário apanhado no labirinto das redes, o homem convertido em seu próprio rato branco de laboratório...um teste perpétuo ao qual nós estamos submetidos como cobaias numa interação mental automática”
Não esquecendo o fato de que os milhares de ratos de laboratório serão usados uma única vez e, imediatamente após servirem aos propósitos dos cientistas, são mortos ou fornecidos como alimentos para cobras.
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