Rizoma, micélio e outros fungos quaisquer
Em 2005, o micologista
americano Paul Stamets publicou seu livro Mycellium Running, um manual para o resgate
micológico do planeta. Foi exatamente isso que você leu: cultivar mais
cogumelos pode ser a melhor coisa que podemos fazer para salvar o meio ambiente.
25 anos antes, Gilles Deleuze e Feliz Guattari haviam publicado Mil Platôs, quase um tratado clássico de filosofia, que começa pela abordagem do que vem a ser um rizoma, propondo quase um jogo infinito[1], sem começo, meio ou fim.
Há cerca de dois meses, recebi pelo grupo de complexidade que participo, um artigo bastante extenso de Brandon Quitten chamado “Bitcoin is the mycellium of money” onde ele se baseia no livro de Stamets para traçar uma longa e detalhada analogia entre o micélio[2] e o mundo Bitcoin, e aqui cabe uma ressalva importante: Quitten faz esse paralelo exclusivamente em relação ao Bitcoin e não ao universo de criptomoedas, ainda que no decorrer do texto mostre como a existência de outras criptomoedas acaba por fortalecer a imunidade do Bitcoin.
Assim que comecei a ler o artigo, imediatamente o texto de Deleuze e Guattari me veio à lembrança. Será que a dupla francesa já tinha estudado o reino fungi? Provavelmente não, até porque o rizoma, por eles definidos era aquele é derivado da palavra grega que significa “um punhado de raízes”. Normalmente, rizomas são confundidos com raízes, podem parecer raízes, mas são, na verdade, hastes de plantas modificadas e avançadas. O rizoma é um caule subterrâneo horizontal que envia brotos e raízes, e essa horizontalidade é apenas uma das semelhanças que tem com o micélio.
O que segue abaixo são reflexões a respeito dessas duas estruturas naturais, sem o objetivo de traçar regras ou modelos a serem aplicados de forma utilitária. Deixo ao leitor o desafio de tirar suas próprias conclusões sobre eventuais usos práticos.
O texto também não tem como proposta reproduzir as constatações de Brandon Quitten sobre o universo Bitcoin, se esse é um tema do seu interesse recomendo que leia o artigo original que é excepcional.[3]
Diferentemente de organizações humanas, tanto o rizoma como o micélio são completamente descentralizados, seja no uso de recursos, na sua reprodução e em suas formas de defesa. Assim como as outras formas de redes descentralizadas, como a matéria escura ou nossas redes de neurônios, eles criam um sistema de consenso entre as pontas, que estão na linha de frente com o ambiente e, portanto, o conhecem melhor o que permite tomadas de decisão mais efetivas.
Sem um controle central, podem resistir ao ambiente como seres unicelulares ou agregados como estruturas reprodutivas multicelulares. Nesse contexto de adaptação moldável resistem aos ecossistemas mais competitivos do planeta e têm a capacidade de “roubar” vantagem competitiva dos seus vizinhos.
Ambos se desenvolvem de forma horizontal, não recebem seus elementos de cima para baixo, mas os absorvem de espécies diferentes. Quando um outro organismo gera uma inovação, eles capturam essa informação genética e a reciclam em elementos base.
3. Multiplicidade
Um rizoma ou um micélio não tem sujeito nem objeto, somente determinações e relações com o todo, não existe uma unidade de poder. Essa multiplicidade se define pelo externo, como uma linha abstrata ou uma linha de fuga, que Deleuze e Guattari definem como desterritorialização.
Todo rizoma tem segmentos, estratos, territórios, significados e atributos, mas também linhas de desterritorialização pelas quais ele foge sem parar. Nada muito diferente dos fungi, que têm mecanismos para quebrar e defender seu próprio sistema.
4. Cartografia e decalcomania
Um rizoma, ou um micélio, não podem ser justificados por nenhum modelo estrutural ou gerativo, eles não têm um eixo genético nem uma estrutura profunda. Não seguem o modelo binário da árvore que se desenvolve a partir de uma raiz. A lógica da árvore é a da reprodução do que já existe (decalque) com um eixo que a suporta.
O rizoma/micélio é um mapa voltado para a experimentação sobre o real (contexto). O mapa não reproduz uma estrutura fechada sobre si mesma, ele a constrói. Assim como o nosso cérebro não é uma matéria enraizada, nem ramificada (ainda que alguns insistam no uso desses termos).
Principais características
1. Conectam um ponto qualquer a outro ponto qualquer
2. Não precisam ter similaridade de traços entre os
pontos
3. Não se definem nem pelo uno, nem pelas partes
(múltiplo). Não são feitos de unidades, mas de dimensões.
4. Não tem começo ou fim, só meio
5. Não são sujeitos nem objetos
6. São metamórficos
7. Não tem pontos de referência, mas pontos de fuga, de desterritorialização
8. Não se autorreproduzem a partir de uma semente
9. São sistemas acentrados, não hierárquicos e definidos
pela circulação dos seus estados.
Conclusão inconclusiva
Um rizoma (assim como um micélio), usando o termo de Deleuze/Guattari é feito de platôs. Toda sua multiplicidade é conectável com outras hastes ou células subterrâneas de maneira a se estenderem indefinidamente (não é à toa que o reino fungi é o maior reino do planeta).
Se você conseguiu chegar até aqui, espero que tenha gerado uma série de abstrações possíveis para o seu cotidiano, suas práticas profissionais e seus negócios.
Não custa lembrar que os fungos foram os únicos seres vivos que conseguiram sobreviver aos 5 grandes eventos de extinção em massa do planeta.
[1]
Para entender o jogo infinito recomendo o conceito original de James P. Carse.
[2] O micélio é
nome que se dá ao conjunto de hifas de fungos multicelulares. Cada hifa é um
filamento microscópico. O micélio auxilia vegetais na sustentação e
absorção de nutrientes e se desenvolve no interior do substrato.
Comentários