Inquisições, gulags e cancelamentos
Ninguém na terra tem a
coragem de ser aquele homem. Jorge Luís Borges – O deserto
A primeira condição de uma dialógica cultural, nos ensina Edgar Morin no 4º volume de seu “O Método, é a pluralidade e diversidade dos pontos de vista. Ainda que não sejamos carentes nem de pluralidade e nem de diversidade e, consequentemente repletos de pontos de vista variados, nossa construção social nos imprime um selo na testa (e na alma) que nunca nos permitiu que esse diálogo de fato se efetivasse.
Mudam as condições históricas, comportamentais, ambientais e
sociais. Muda a dinâmica do poder, mudam as leis, muda até o tão falado zeitgeist.
Só não muda o fato de que continuamos a ser uma humanidade dividida entre
perseguidos e perseguidores – até os neutros são considerados opressores pelos
perseguidos e coniventes pelos perseguidores. Isso quando não somos
surpreendidos pelos opressores alegando que são perseguidos, com um discurso
vitimista pedindo proteção.
Ainda que todas as inquisições do passado tenham sido
promovidas por grupos dominantes (ou minoritários que tornaram-se dominantes e
decidiram apagar o passado), hoje elas são promovidas indiscriminadamente por bandos
de todos os tamanhos, afinal, não se promove perseguição de maneira solitária:
é a suposta segurança que dá a um coletivo a percepção de poder. Que o digam as
torcidas de futebol.
O diálogo cultural, que enriqueceria a todos através das suas trocas de informações, ideias e conhecimentos, gera um processo de entropia onde o calor da efervescência cultural aponta para renovadas eras do gelo. Temos uma miríade de exemplos que apontam para tempos de estagnação ou de conflitos sangrentos quando o desenvolvimento de críticas recíprocas foi impedido.
Se, no passado, aqueles que eram considerados desviantes da cultura estabelecida foram presos, condenados a trabalhos forçados, institucionalizados, torturados, queimados, hoje, em tempo digitais eles são cancelados (talvez apenas um eufemismo para a possibilidade de “liquidar” com nossos opositores) em um processo descentralizado onde jogam, ao mesmo tempo, o poder institucional e as facções representativas de todas as tribos.
O pouco que temos de evolução artística, científica, cultural é resultado de mentes desviantes. Os loucos, como eram denominados a seu tempo.
Condenamos todo tipo de intolerância, usando como argumento a nossa própria intolerância e, se no passado, esses intolerantes eram os inquisidores, defendemos o revanchismo como solução para promover a nossa própria inquisição. A caça às bruxas medievais ou, como descreve Lilian Hellman, aos denominados subversivos antiamericanos do macarthismo acontece todos os dias nas redes. A única coisa que mudou foi a definição de bruxos.
Nosso delírio inconsciente (ou não) é o de promover o linchamento público de qualquer um que discorde de nós.
Se não nos instruirmos a promover uma revolução mental que permita aos humanos deixarem de se submeter às palavras de ordem do momento e, ao mesmo tempo, a refletir sobre os pontos de vista discordantes, jamais sairemos desse círculo vicioso e viciante.
Mesmo elevando encômios a pessoas como Mandela, Mahatma Gandhi e Martin Luther King Jr., e reproduzindo bordões insípidos proclamando que gentileza gera gentileza.
Mas ninguém tem a coragem de ser esse homem.
Descrição da imagem: pintura de Jacques de Molay, líder dos templários sendo preparado para morrer na fogueira.
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