Caminhos difíceis e turbulentos



Caminhos difíceis e turbulentos (Rough and rowdy ways) é o novo álbum do senhor Robert Allen Zimmerman, a.k.a, Bob Dylan, que bem poderia se chamar dias difíceis e turbulentos em tempos de pandemia. De qualquer forma, sua temática não é a crise mundial, mas muito da história e das referências do seu autor.

Como diz meu amigo Omar Giammarco, não é à toa que esse jovem que em 2021 vai completar 80 anos, ganhou um prêmio Nobel de literatura. Ok, é apenas um compositor popular você vai argumentar, e eu contra argumentarei que sua poesia não é nada popular, ainda que ele, como músico, seja um dos grandes ícones populares da história. É só a minha opinião, mas eu o considero o maior poeta de língua inglesa do pós guerra, coincidentemente, começa a aparecer na época em que morreram Cummings e Sylvia Plath.

O disco começa, não por acaso, com I contain multitudes, verso de Walt Whitman, que nele dizia que prosseguia para completar sua próxima dobra do futuro. Dylan vai rever o passado em muitas das canções, talvez se preparando para a sua próxima dobra, com referência explícitas de momentos obscuros de Blake e de Poe.

Em False Prophet, como um profeta da verdade, canta que ele vai para onde apenas os solitários conseguem ir, cercado por uma brisa fria.

A história da poesia continua em My own version of you, uma história de um Frankenstein em busca da sua criatura, cita Shakespeare, brinca com a palavras em versos de métricas diferentes.

I've Made Up My Mind to Give Myself to You é mais uma canção linda e melancólica, o viajante da longa estrada do desespero, onde não encontrou ninguém para acompanhá-lo, mas não deixa de ser uma grande balada romântica (sem dúvidas, uma das mais belas declarações de amor já escritas).

Em Black Rider, não está claro se este é um indivíduo literal ou simbólico. De fato, a maneira como a letra pode ser lida é, muito provavelmente, as duas coisas.

A música seguinte serve como uma homenagem a um músico de blues, com o nome de Jimmy Reed. Mas o modo como Bob Dylan faz isso não é falando sobre o próprio homem, pelo menos não diretamente. Pelo contrário, parece que lembrar de Jimmy, que faleceu em meados da década de 1970, também o faz olhar para sua própria vida, incluindo sua carreira. De fato, nota-se que, mesmo no som, Goodbye Jimmy Reed é uma reminiscência do passado de Dylan. E juntando todas as letras, o que Bob parece finalmente expressar é uma grande admiração pelo músico que influenciou muita gente no rock.

Mãe das Musas, onde quer que esteja, eu já vivi muito além do que deveria ser a minha vida. Esse é apenas um dos versos trágicos de Mother of Muses, que acaba com a frase que está voltando para casa, uma expressão que, definitivamente, não se refere à sua moradia terrena. De certa forma um pedido dúbio de inspiração e de redenção.

Em 10 (ou 11) de janeiro de 49 a.C Júlio César atravessou o Rubicão, violou a lei e tornou inevitável o conflito armado e tomou o poder em Roma. Segundo Suetônio, César teria então proferido a famosa frase Alea jacta est ("a sorte está lançada" ou "os dados estão lançados"). Dylan lança sua sorte também nessa travessia em Crossing the Rubicon, que também é uma referência à idéia de um indivíduo atingir um ponto em que não pode voltar atrás. E o modo como Bob Dylan o usa nessa música parece geralmente se referir ao conceito de mortalidade. Isso quer dizer que as letras são dedicadas principalmente a olhar para sua vida, bem como as vidas de outras pessoas, com o entendimento de que seu tempo na Terra é realmente finito. E, no processo, eles de fato escreveram as histórias imutáveis ​​de suas vidas.

Key West (Philosopher Pirate), definitivamente é uma autobiografia ou, considerando o espírito do álbum, um obituário previamente escrito para quando a morte chegar, mesmo que o espaço geográfico seja citado, e louvado, como o lugar onde se pode encontrar a imortalidade. O texto é profundo como uma sepultura e leve como uma pena. Parece o clímax de tudo o que Bob vem tentando fazer como músico nos últimos vinte anos. E em suas letras é exatamente o que ele trabalhou tanto por tanto tempo: uma música que simplesmente descreve um lugar, descreve o que acontece lá e deixa o conteúdo temático subir à superfície por conta própria.

Finalmente, o disco acaba com a gigantesca Murder Most Foul (O assassinato mais imundo). São 1.376 palavras distribuídas em 16 minutos e 56 segundos em que o cantor revisita acontecimentos e figuras icônicas de seus anos mais intensos, os anos 60 e 70.  É a música mais longa de sua carreira. Há uma armadilha: não é uma canção que Dylan compôs no últimos meses, quando nosso mundo foi revirado pelo coronavírus. É provável que seja uma música registrada há relativamente pouco tempo (alguns meses, alguns anos), porque a canta com essa voz quebrada que exibiu nas últimas gravações.

Os dias continuarão tenebrosos, mas espero que as musas continuem a inspirar Dylan por um bom tempo.

Comentários

Marcos C Ribeiro disse…
Obrigado pelo profundo resumo e interpretação do lançamento de Bob Dylan. Aprendi muito ! abraços
O Tempo Passa disse…
Eu, correndo o risco de ser taxado de ridículo, coloco Leonard Cohen como um nome digno de figurar com Dylan no rol do Nobel. O que vc acha?

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