Falando de Pascal


 Argumentum ad Hominem (literalmente, argumento contra o homem) é um tipo de falácia de relevância, um subgrupo do que é conhecido no campo da lógica como falácias não-formais.

Quando não tem mais argumentos para usar, um debatedor agressivo, em vez de refutar a verdade do argumento adversário, ataca diretamente o caráter pessoal do oponente.

Blaise Pascal, matemático, físico, inventor, filósofo e escritor, foi também um teólogo jansenista (doutrina estabelecida por Cornélio Jansen, bispo de Ipres, fundamentada nos escritos agostinianos e muito aparentada com os princípios do calvinismo).

Ainda que até hoje seja um dos pensadores mais relevantes da história não se tornou uma referência como Descartes, seu contemporâneo e de quem discordava frequentemente quanto à supremacia absoluta do racionalismo.

Ninguém atribui a uma pessoa o epíteto de “pascaliano”, mas estamos cercados de pessoas ditas, ou autoproclamadas como cartesianos. O antropocentrismo humanista não aceita o transcendental. Seja ele o Deus de Pascal, seja qualquer de outro deus que possa estar acima da supremacia racionalista do homem.

“A vida de um homem não é mais importante para o universo do que a de uma ostra”[1], escreveu o filósofo escocês David Hume, outro que se opunha ao conceito do espírito humano de Descartes.

Ainda que Hume não esteja falando nenhuma inverdade (a cosmologia do século XX não o deixa mentir), o humanismo e o cartesianismo continuam firmes e fortes no nosso tempo, a ponto de ser, inclusive, taxado como uma religião por conservacionistas como Eherenfeld (mesmo que não encontremos igrejas com a placa de “Igreja do Humanismo”)[2]

Por mais que as ideias de Pascal sejam brilhantes (e sua matemática e física sobrevivam até hoje), é intolerável para os membros da igreja do humanismo aceitarem um pensador que preferia apostar na existência de Deus (ainda mais de um Deus único e todo-poderoso).

É mais intelectual ser ateu (ainda que eu, pessoalmente, entenda que o ateísmo demande uma forma infinita de fé), ou mais chique se autodenominar agnóstico, mesmo quando as pessoas que assim se etiquetam não façam a menor ideia do que seja o agnosticismo e apenas o tomem como um ateísmo gourmet ou light.

Mas voltemos a Pascal.

A epistemologia de Pascal

A tese de Pascal de que é necessária a constatação dos limites do conhecimento[3] se contrapõe à metafísica racionalista, cujo ponto de partida é o Eu cartesiano e se apoia na análise indutiva relacionada com a experiência empírica.

Sua lógica parte da geometria, ou seja, parte dos princípios ou axiomas de base dos quais são derivadas outras proposições ou teoremas. A geometria é  uma ciência demonstrativa cujo principal objetivo é a definição e a demonstração de proposições que compõem um sistema.

Mas a geometria tem um objetivo impossível: cada nova proposição definida e demonstração provada exige outras definições e proposições e essas a outras até o ponto de uma regressão ad infinitum.

Aqui há um paralelo aristotélico: a necessidade de conhecer a causa que produz um efeito e demonstrá-la de uma forma irrefutável. Uma vez demonstrado é preciso entender o que provoca a causa anterior até o ponto em que caímos no mesmo efeito ad infinitum em que os axiomas últimos são indemonstráveis. 

Pascal define esses axiomas como “primitivos”  que somente podem ser apreendidos pela “luz natural” (Descartes também supõe a existência de uma compreensão intuitiva ao lado da racional, mas a coloca sujeita à luz da razão pura e independente dessa, é algo indefinível, porém também racional, assim como o “nous” de Aristóteles). [4]

Enquanto Descartes entende que o conhecimento líquido e certo só se atinge pela razão, Pascal entende que aquelas certezas sobre o princípios primitivos estão desvinculadas do pensamento, localizadas no coração, interior da subjetividade, propondo dois modos de conhecer: o conhecimento lógico-dedutivo efetuado pela razão e o conhecimento intuitivo efetuado pelo coração.

São conhecimentos tão absolutos que a tentativa de defini-los gera uma circularidade de linguagem onde a explicação tem a mesma origem semântica do que se tenta explicar, tornando uma “lógica tautológica”.

O que aponta para o limite do conhecimento racional: onde o processo demonstrativo e lógico não pode ir além. A fundamentação do conhecimento indica a existência de limites e a razão reconhecer que não tem uma capacidade ilimitada de se quiser operar de uma maneira lógica e correta.

Dessa forma, Pascal não descamba nem para o dogmatismo (onde se aspira ao conhecimento absoluto das coisas e a posse da verdade), nem para o ceticismo (ausência de base para o conhecimento).

Mesmo os princípios primitivos não podem ser considerados últimos e absolutos, mas apenas que são entendidos por qualquer pessoa.

Experiência e indução

Segundo a física de Pascal é impossível seguir apenas o modelo mecanicista para compreender os fenômenos da natureza. Alguns deles não têm um sentido absoluto, mas são apenas os últimos que conseguimos compreender e que a nossa racionalidade pode atingir. Além disso afirma que as experiências são os únicos princípios da física.

Mesmo que a experiência seja considerada o principal alicerce para construir hipóteses, ela é insuficiente quando se trata de sustentar logicamente uma determinada teoria científica.

Então quando não podemos conhecer diretamente a coisa que é objeto da experiência e observação, devemos recorrer a uma demonstração indireta da verdade, pelo princípio do terceiro excluído, ou seja pela demonstração do absurdo.

Na ausência de um critério último de verdade é necessária uma maneira de demonstrar indiretamente a validade das hipóteses empíricas através da demonstração por absurdo.

Bem antes de Popper propor seu falsificacionismo lógico[5], já apregoava Conan Doyle, nas palavras de Sherlock Homes:

Devemos sempre procurar a alternativa mais provável e tentar destruí-la. É a primeira regra da investigação [6]

Depois de eliminar o impossível, aquilo que sobra, mesmo parecendo improvável, deve ser a verdade.[7]

Indutivismo é o raciocínio que, após considerar um número suficiente de casos particulares, conclui uma verdade geral. A indução, ao contrário da dedução, parte de dados particulares da experiência sensível. De acordo com o indutivista, a ciência começa com a observação.

O uso desse processo lógico, também evita que contaminemos a ciência com hipóteses ad hoc, que nada acrescentam ao conhecimento.[8]

Pascal, assim como Kant depois dele, compreenderam bem a coerência interna e os aspectos positivos do racionalismo e do empirismo mas, por outro lado, eles viram claramente também e colocaram em evidência os limites e as insuficiências dessas duas posições.[9]

A inexistência de um conhecimento metafísico da natureza dos fundamentos, pode levar o pensamento a operar meramente a partir de definições nominais.

Pascal, o subversivo

Escapando das soluções fáceis e simplistas, Pascal se torna o subversivo que nada contra a corrente. Não é um intuitivo puro, nem anti-intuitivo. Não descarta os conceitos fundacionistas, mas não se apoia exclusivamente neles. Confronta arranjo reducionista da filosofia cartesiana que quer deixar de fora tudo que não seja absolutamente racional.

Contra outras epistemologias do seu tempo, coloca em movimento o desmonte do status quo, por meio da descrição que faz da imaginação e da abrangência dessa na compreensão das coisas, nos seus Pensamentos[10]

Sua descrição da faculdade imaginação, no escopo do pensamento de Pascal, desbarata a relação exclusiva que Descartes procura estabelecer entre razão e juízo e que, muito diferentemente, coloca este último de maneira inexorável sob o poderio instituidor da imaginação, poderio este, por sua vez, que subjaz ao vínculo que esta faculdade mantém com a natureza.

Porém – e com isso já se vai apontando a originalidade de Pascal –, se esta posição tira água do moinho dogmático, tampouco a coloca nos engenhos céticos ou relativistas.[11]

Pelo contrário, a partir do reconhecimento dos limites colocados ao saber humano e do consequente abandono da ilusão do estabelecimento de um ponto fixo e seguro para as ciências (ilusão que mantemos até hoje no discurso que a ciência resume a solução para todos os problemas humanos), deixa claro que a legitimidade dos princípios de que nos valemos para a produção de conhecimento não surgem pelo fato de serem fixos e imutáveis, mas de sua constância.

E esta constância não só basta enquanto estiver em vigor como também ela é razoável graças à imaginação e ao vínculo que mantém com a natureza, na qual, afinal das contas, não passamos de uma ostra.

Texto publicado originalmente no "Balaio Caótico": https://balaiocaotico.com/2021/06/08/falando-de-pascal-por-fabio-adiron/

[1] HUME, David. On suicide. Penguin Books UK. Londres. 2005. Tradução livre.

[2] EHERENFELD, David. A arrogância do humanismo. Editora Campus. Rio de Janeiro. 1992

[3] PINTO, Rodrigo H. Pascal e a questão dos limites do conhecimento in Cadernos Espinosanos #24. Universidade de São Paulo. 2010

[4] Nous (em grego antigo, νοῦς: 'intelecto', 'mente', 'razão'), termo filosófico grego que não possui uma tradução direta para a língua portuguesa, significa atividade do intelecto ou da razão, em oposição à atividade dos sentidos. Muitos autores consideram o termo como sinônimo de "inteligência" ou "pensamento". Fonte Wikipedia

[5] POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. Cultrix. São Paulo.2013

[6] DOYLE, Conan. A aventura de Black Peter

[7] DOYLE, Conan. The sign of four

[8] Na ciência, uma hipótese ad hoc é geralmente criada com o intuito de tentar provar o que uma nova teoria proposta não consegue explicar, evitando que seja desacreditada. Em Filosofia, as hipóteses ad hoc surgem também como argumentos inventados a partir do próprio fato que se pretende explicar.

[9] GOLDMANN,Lucien. Le Dieu Caché. Paris. Gallimard. 1959

[10] PASCAL, Blaise. Pensées. Createspace. Paris.2015

[11]  SILVA, Dalila P.ANTI-INTUICIONISMO E ANTIFUNDACIONISMO: O PAPEL DA IMAGINAÇÃO NA EPISTEMOLOGIA DE PASCAL in Cadernos Espinosanos #40. Universidade de São Paulo.2019

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